quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Preconceitos na Contramão da Inclusão Social.

Preconceitos na Contramão da Inclusão Social.


Romeu Kazumi Sassaki, 2/09/2008.
Preconceitos inofensivos não existem, todos os preconceitos machucam. Ou "Pimenta nos olhos dos outros é colírio". De fato, uma palavra maldosa, escrita e oral, ou uma imagem, quando não se refere diretamente a nós, pode até parecer inocente, engraçada, nada preconceituosa etc. E quase nunca nos damos conta do quanto uma palavra ou imagem preconceituosa pode machucar os outros. Vejamos alguns exemplos da vida real.


Atribuindo um conceito que não é da pessoa (1)
"Porque você parece uma retardada mental". Esta foi a justificativa do diretor Woody Allen quando demitiu a atriz Annabelle Gurwitch da peça Writers´s Block (bloqueio de escritor) que ele ensaiava. Depois de chorar por 12 horas, ela falava a quem encontrasse: "Fui demitida por Woody Allen. Por telefone". (Sérgio D'Ávila, Revista da Folha-FSP, 20/3/05, p.27).


Atribuindo um conceito que não é da pessoa (2)
Uma resposta inacreditável foi dada por uma escola pública quando um de seus professores foi denunciado por haver comparado a atitude de um aluno com a de uma pessoa homossexual. Vejamos como aconteceu.
Em abril de 2004, um aluno da Escola Estadual Professor Otacílio de Carvalho Lopes, que por distração não havia respondido a chamada na aula de História, pediu presença ao professor. Este discutiu com o estudante e mandou-o que "parasse de imitar uma bicha". O pai do adolescente, no mesmo dia, registrou o Boletim de Ocorrência e abriu procedimento administrativo contra esse professor, na diretoria da escola.
O caso foi encaminhado à Diretoria de Ensino Leste 4, órgão da Secretaria Estadual de Educação, e originou um processo. Na resposta, o órgão "afirma que 'bicha' não é termo chulo e reconhece que professores podem usá-lo em sala de aula para manter um relacionamento amistoso com a turma". A Secretaria informa que, depois de uma reavaliação, o caso passou para a 1ª. Comissão Processante Permanente, onde está atualmente (março/2005). A comissão deve convocar testemunhas de defesa e acusação nos próximos meses, para dar seu parecer sobre o caso (Daniel Gonzales e Arthur Guimarães, em "O uso do termo 'bicha' por professores", O Estado de S.Paulo, 24/3/05).
Então, "para manter um relacionamento amistoso com a turma", os professores estão liberados para chamar qualquer aluno de "bicha", mesmo que ele não seja? Os fins justificam os meios?


Ofendendo um atributo da pessoa
Ana Luiza, uma estudante negra com 10 anos de idade conta que, por causa das brincadeiras preconceituosas dos colegas, mudou de escola duas vezes. Ela é filha de uma família de classe média de Mesquita (cidade na Baixada Fluminense) e sempre estudou em colégios particulares. Por onde passou, ela teve de conviver com o fato de ser a única aluna negra da classe ou até mesmo da escola. Como os professores e a escola nada faziam para mudar essa situação, ela diz que chegou a perder o interesse pelos estudos. "Falavam que eu tinha cabelo duro, de bombril. Eu reclamava com os professores, mas eles não faziam nada". Ana Luiza dá a sua receita para agir em caso de preconceito: "Quando fazem isso comigo, eu vou lá e falo que racismo é crime e que eu vou processar e reclamar com a diretora".
A mãe dela, a técnica de laboratório Fátima Monteiro, 35, se sentiu orgulhosa com a postura de Ana Luiza: "No meu tempo de estudante, eu voltava para a casa chorando, sem dizer nada. Mas ela aprendeu a se defender e conversa comigo e com os professores quando se sente discriminada." (Folha de S.Paulo, 18/5/03, p. C7).


Ridicularizando muita gente ao mesmo tempo (1)
Corria o ano de 1995. Dois filmes, cujos personagens principais tinham deficiência, estavam entre os finalistas do Oscar, da Academia de Cinema de Hollywood: "Forrest Gump, o Contador de Histórias", em que Tom Hanks faz o papel de um adulto com deficiência intelectual, e "Nell", no qual Jodie Foster interpreta uma mulher com autismo.
David Drew Zingg era colunista do jornal Folha de S.Paulo e, na véspera da premiação, escreveu um artigo, cujo título já revelava a postura preconceituosa dele: "E o Oscar vai para... quem for mais burro". No subtítulo, mais uma ofensa a pessoas com deficiência: "Favoritos são 'Nell' e 'Forrest Gump', filmes que agradam quem tem dificuldade em amarrar o sapato de manhã".
Para começar, David Zinng, além de mostrar que não sabe a diferença entre autismo e deficiência intelectual, ofendeu simbolicamente pessoas como Forrest e Nell, chamando-as de "burros". Mas ele não está nem aí com as diferenças. Está mais interessado em criticar a Academia por "premiar" personagens que não merecem o respeito dele. A seguir, alguns trechos do artigo, em que os cegos também são citados, no mau sentido:

"Chegou a hora do Oscar na Cidade do Brilho, e os principais prêmios estão indo para os burros. Nosso mundo está ficando burro e mais burro ainda. 'Forrest Gump' é um filme que glorifica a burrice. 'Nell' - que David Letterman chama, apropriadamente, de 'Noiva de Gump' - faz o mesmo. Ambos equacionam QI baixo com bondade interior. Isso é tranqüilizador para milhões de pessoas que acham o pensar rápido um processo doloroso, mas é uma afronta a quem já leu um livro inteiro. (...)
Esses filmes retratam a inteligência como vilã da vida. (...) O que deve fazer uma mulher se o homem se magoa com uma piada de 'homem burro'? Pode dizer: 'Claro que eu não estava falando de você, querido'. A maioria dos homens é tão cega - cegueira induzida pela testosterona - que acredita nisso. (...)
Esses filmes que louvam a burrice devem faturar uma penca de Oscars. (...) Abaixo da superfície, eles equacionam virtude com falta de inteligência. Quanto mais burros o herói e a heroína, melhores as pessoas reais seriam. São filmes anti-intelectuais, dos mais sedutores. Neles, a estupidez vira virtude e a inteligência, um lado negativo. (...) Nell não sabe nem dirigir um carro. O espectador que não consegue entrar na internet sente-se tranqüilizado e feliz vendo Jodie Foster curtir sua vida primitiva. A linha de pensamento 'burrice é boa' nega o esforço histórico do homem para entender o que o diferencia dos outros mamíferos, sem falar em aves, abelhas e pedras." (Folha de S.Paulo, 23/3/95).



Ridicularizando muita gente ao mesmo tempo (2)
No dia 14 de outubro de 1999, Claudio Vereza, representando o Centro de Vida Independente do Espírito Santo, escreveu: "Companheiras(os), estava voltando feliz pra casa. Afinal foram três dias intensos e repletos de conteúdo positivo para a caminhada em busca da cidadania plena das pessoas com deficiência no Brasil, no I Congresso Empresariado, Trabalho e Deficiência, de 7 a 9, realizado pelo CVI-RJ. A partir de leis, que começam a ser cumpridas, ou de programas de capacitação profissional e de inserção no disputadíssimo e escasso mercado de trabalho, essas pessoas vão construindo a almejada 'vida independente', podendo decidir, pela própria vontade, os rumos de suas vidas, não mais tuteladas por outrem. De repente, na última página do segundo caderno de O Globo do domingo, 10/10/99, deparo-me com esta desagradável, infeliz e preconceituosa coluninha, assinada por um 'engraçadinho' Jorginho Guinle, dentro da coluna maior de Agamenon com o seguinte conteúdo":

Freak Jazz Festival, por Jorginho Guinle.

O Freak Jazz vai começar. Sou apaixonado pelo jazz, mas nos meus momentos de lazer prefiro ouvir música. O Jazz é um ritmo sensual, ideal para se comer gente. Toda vez que eu boto um disco de jazz na vitrola lá em casa, as mulheres resmungam: 'Por que você não bota outra coisa?'. Bebop, traditional, dixieland, swing, cool, jazz... existem várias formas de expressão para o jazz, mas a mais quente, na minha opinião, é o freak jazz, que é o jazz executado por deficientes físicos. Este ano teremos o pianista cego George Shearing, já tivemos Michel Petrucciani, que era anão, e o saxofonista Eddie Pinzolini, que transformou o seu exagerado defeito físico num novo instrumento musical, o jepophone, um tipo de trombone de vara. Esse ano também teremos percussionistas mancos, guitarristas manetas e até o físico Stephen Hawking, que vai tocar cadeira de rodas. O que prova que o freak jazz é igual ao cigarro: faz mal à saúde e não deve ser tocado na frente das crianças.

Continua Claudio Vereza: "Indignação, decepção, revolta! Afinal, um jornal desse vulto conta com manuais de redação e de ética jornalística, onde uma nota de tanto mau gosto é totalmente inadmissível. Aprendi, na luta, a transformar a indignação em ação. Por isto, quero aqui convocar a todos para enchermos a direção de O Globo de cartas, telegramas, faxes, e-mails, telefonemas etc., colocando nosso protesto e exigindo retratação imediata e no mesmo espaço. Solicito também que o CVI-Brasil e o CVI-RJ estudem, em caráter de urgência, a possibilidade de processo judicial, seja recorrendo ao Ministério Público ou a quem de direito. Não podemos admitir 'brincadeiras' retrógradas e ilegais como esta! (E logo no caderno Dois, onde as questões culturais deveriam ter destaque central). Vamos reagir, companheiras(os). Passe esta mensagem à frente, enviem agora o seu protesto ao Jornal O Globo! 'Quem sabe faz a hora!'. Endereços de O Globo: http://www.oglobo.com.br , (21) 534-5000 Redação e (21) 534-5656 Globofax. Abração. Claudio Vereza, CVI-ES".


Analogias preconceituosas envolvendo o autismo.
O leitor João Diógenes Caldas Salviano, de Recife, na carta que enviou ao Fórum dos Leitores do jornal O Estado de S.Paulo (18/3/02), revela, quiçá inadvertidamente, sua noção equivocada sobre o autismo. E, ao apontar (conscientemente, é claro) os parlamentares como "autistas" , ele demonstra sua total falta de respeito pelas pessoas com autismo. Aproveitou o título do programa televisivo "Casa dos Artistas", que estava em voga, para construir o trocadilho "casa dos autistas". O jornal, por sua vez, valorizou o trocadilho, utilizando-o como título da carta. Não estou aqui analisando o mérito ou demérito do tema "CPMF, reforma tributária, tucanos e pefelistas", que o leitor João Salviano abordou. Estou reprovando a atitude preconceituosa embutida na analogia que ele fez entre "pessoas com autismo" e "parlamentares dissociados da realidade, retroalimentando apenas o ego e a vaidade sem limites racionais". Reproduzo abaixo a referida carta.

FÓRUM DOS LEITORES, O Estado de S.Paulo, 18/3/02.
Casa dos autistas
A crise entre tucanos e pefelistas nada traz de positivo ao brasileiro. Seria interessante se a maioria da classe parlamentar derrubasse essa CPMF e fizesse urgentemente a reforma tributária simples, objetiva e transparente, em benefício dos consumidores e dos produtores. Políticas públicas sim, CPMF não. Daqui a pouco nos livraremos dos nojentos reality shows de vazio cultural total e QI zero. Mas será que, nestes oito anos de tucanato com pefelistas e peemedebistas, não estaremos participando da "casa dos autistas", dos que vivem dissociados da realidade social, retroalimentando apenas o ego e a vaidade sem limites racionais?! - João Diógenes Caldas Salviano, Recife.



Deficiência associada à incompetência.
A revista Exame, na edição 659 (15/4/98), presta um desserviço à causa internacional da inclusão social de pessoas com deficiência, em particular das pessoas cegas.



Na capa aparece uma foto que mostra um senhor, de óculos escuros, bem trajado, de pé e segurando com a mão esquerda a correia afivelada a um cão-guia. A foto, para realçar a idéia de escuridão, está em branco e preto ocupando toda a capa, tendo ao lado o seguinte texto:

POR QUE OS ECONOMISTAS ERRAM TANTO? Eles são as grandes estrelas da bilionária indústria de previsões. Mas atenção: se você quer saber o futuro, talvez o mais eficaz seja jogar a moeda para o alto.

Eu pergunto: Por que profissionais da mídia insistem em associar a figura de uma pessoa cega com a idéia de "errar tanto"? Só porque ela não vê? A mensagem e a foto, juntas, sugerem que uma pessoa cega acerta menos que uma moeda jogada para o alto.
O médico Ruy do Amaral Pupo Filho escreveu para a revista: "Ao usar a imagem de uma pessoa que tem uma deficiência para ilustrar e caracterizar a idéia de um profissional ineficiente, incapaz, 'que erra tanto', a revista Exame comete um grave erro. Sua atitude reforça o preconceito que sofrem as pessoas com deficiência de que são incompetentes ou incapazes."
Invariavelmente, nestes casos, a resposta que recebemos é aquela de que não houve intenção de ofender as pessoas com deficiência, como alegou a Redação da revista:

"Agradecemos a sua mensagem. A propósito do seu comentário sobre a utilização da foto de um deficiente visual na capa, lamentamos que a imagem possa causar um efeito negativo. Não tivemos a intenção de tratar a questão de forma pejorativa ou de reforçar qualquer preconceito".

Este tipo de resposta é previsível e é inaceitável. Pois, ninguém vai responder que "fez com a intenção de ofender". E, por isso, 'tudo termina em pizza': "perdoamos o ofensor porque ele ofendeu sem querer". A valer este raciocínio, todos os ofensores serão perdoados, mesmo que tenham ofendido propositalmente; bastará, depois, alegar que não tiveram a intenção de ofender e pronto.
Precisamos educar o público, a sociedade. Devemos registrar as manifestações preconceituosas e os atos discriminatórios. Devemos ajudar a sociedade a aprender onde está o preconceito e a entender os danos que ele causou.


Comparando objetos com pessoas.
A revista Exame, na edição n. 660, de 22/4/98, traz uma breve matéria assinada por Pedro Mello à página 103. Ele escreveu o seguinte trecho ao comentar sobre o desempenho de Nino, um computador de mão:

"Por enquanto, vale lembrar que o Windows CE já é uma versão meio aleijada do Windows 95. Como o Windows que equipará o Nino é uma versão reduzida do Windows CE, é bem capaz que seja paraplégica. Afinal, é a versão reduzida da versão reduzida."

Neste caso, as palavras "meio aleijada" e "paraplégica" foram utilizadas para se referir, respectivamente, a dois computadores de menor capacidade, o que configura uma analogia injusta e preconceituosa para com as pessoas com deficiência.
Após escrever para a revista, recebi a seguinte resposta:

"Infelizmente, escapou ao colaborador Pedro Mello e ao editor que a analogia poderia denotar preconceito na frase em questão. De qualquer forma, asseguramos que redobraremos os esforços para evitar que fatos como esse se repitam".

Em 20/4/98, o ativista Marco Antonio Ferreira Pellegrini escreveu para Pedro Mello: "Estou extremamente ofendido pela analogia preconceituosa e discriminatória, para mim inédita escrita por um profissional da comunicação e tecnologia". E acrescentou algumas das atividades que ele exercia no Metrô de São Paulo com o intuito de conscientizar o jornalista sobre o significado das expressões 'versão reduzida do reduzido', 'meio-aleijada' etc.".
Em 21/4/98, o também ativista Fernando Machado enviou a seguinte mensagem para Pedro Mello: "Toda pessoa que opta por informar deve ter respeito, sensibilidade, conhecimento e saber fazer das palavras e expressões uso adequado. Cabe ao jornalista informar. De modo claro, sem precisar empregar expressões que possam atingir pessoas. Foi o caso de sua reportagem na revista Exame, quando cita que o programa é uma versão 'meio-aleijada' e 'paraplégica'. No momento em que as pessoas com deficiência buscam sua inclusão na sociedade com respeito e dignidade, o emprego dessas palavras denota, no mínimo, uma profunda discriminação".
Em 7/5/98, a psicóloga Cristiane Mariano e a assistente social Marli Mariano dirigiram a seguinte mensagem à revista Exame, referindo-se às edições 659 e 660: "Consideramos estas analogias injustas e preconceituosas para com as pessoas com deficiência. Associar a imagem da pessoa com deficiência visual à incompetência dos economistas ou ainda comparar uma pessoa com deficiência física a um software obsoleto e ultrapassado é, no mínimo, grosseiro e discriminatório. Gostaríamos de expressar nossa indignação a esse respeito, visto que temas como a inclusão social, queda de barreiras arquitetônicas e equiparação de oportunidades estão sendo discutidos na atualidade. Nossa pretensão não é apenas a de registrar um protesto ou expressar nossas opiniões, mas também de propor uma reflexão acerca dos conceitos, das palavras que foram utilizadas e a conotação que foi atribuída às mesmas. Refletir sobre uma atuação mais justa, que possa promover uma melhor qualidade de vida às pessoas, que nos leve a incluir em nossa vida aquilo que muitas vezes desprezamos no outro, mas que pode ser um reflexo de nossos limites e preconceitos".


Desserviço à imagem da pessoa com autismo.
Na entrevista concedida a Rafael Cariello, da Folha de S.Paulo, o cientista político Renato Lessa utilizou duas vezes a palavra "autista" para apontar aspectos depreciativos do comportamento de governantes e congressistas. Por sua vez, o jornalista repercutiu essa palavra por três vezes ao abrir sua matéria em 15/5/05: uma no título em letras garrafais e duas na introdução.
A utilização do adjetivo "autista" no contexto tratado pelo entrevistado configura um exemplo de desserviço à imagem da pessoa com autismo. Inadvertidamente, foi passada ao leitor a idéia equivocada de que o comportamento das pessoas com autismo teria a mesma característica negativa apontada nas ações do Executivo e do Legislativo.
Tal uso vem na contramão da história, pois hoje aceitamos as diferenças individuais da pessoa com deficiência como atributos dignos de respeito e valorização.
Nos trechos da matéria, escaneados e abaixo transcritos, grifei os cinco trechos em que o termo "autista" foi utilizado indevidamente.

Governo e Congresso têm comportamento autista, afirma Lessa.

RAFAEL CARIELLO, da Sucursal do Rio
Folha de S.Paulo, 15/5/05.

O cientista político Renato Lessa afirma que governo e Congresso agem de forma autista e predatória. A lógica do Executivo e do Legislativo, diz ele, é de uma dupla e simultânea captura: um tenta ocupar cargos na administração, o outro, conquistar maiorias.
Diz o professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro: "Se essa agenda ficar por muito mais tempo confinada a relação entre esses dois atores, a sociedade de alguma maneira vai tender a ultrapassar essa agenda. É difícil pensar a sustentabilidade indefinida de um padrão autista".
Folha - Tal padrão é modificável?
Lessa - A modificação, se vier, virá de fora para dentro. Machado de Assis sugeria que a gente olhasse o Legislativo do ponto de vista das galerias. Se essa agenda ficar por muito mais tempo confinada à relação entre esses dois atores, a sociedade de alguma maneira vai tender a ultrapassar essa agenda. É difícil pensar a sustentabilidade indefinida de um padrão autista.
Folha - Ele também disse ver riscos de uma crise semelhante à ocorrida no governo João Goulart.
Lessa - É uma ameaça retórica. Essa crise atual nada tem a ver com o quadro do Goulart. (...) Há quem acredite que para entender a política é preciso entender a relação entre Executivo e Legislativo. É uma visão autista. Para quem pensa assim, o governo Goulart caiu porque perdeu a sustentação parlamentar, mas não leva em conta o que acontecia no ambiente social.



Dorinha, a nova personagem da Turma da Mônica.
A primeira história de Dorinha, ilustrada na edição n. 221, da revista Mônica, de novembro de 2004, mostra a maneira positiva como essa personagem e o seu cão-guia Radar entram em contato pela primeira vez com a Turma da Mônica. Dorinha logo estabelece ótimas relações de amizade com a Mônica, o Cebolinha, o Cascão, a Marina e a Magali. Dorinha mostra estar bem resolvida com a deficiência que possui (cegueira). Sabe andar com o cão-guia e com a bengala dobrável, assim como sabe lidar com as reações das pessoas. De bom humor e autoconfiante, ela está com seus sentidos de audição (p. 9 a 17), tato (p. 11) e olfato (p. 16) sempre conectados com tudo o que ocorre no ambiente em seu entorno. As situações focalizadas são simples e, através delas, o leitor percebe que Dorinha mostra suas habilidades com naturalidade, sem ostentação.
Na condição de criança, Dorinha é apresentada como igual às outras crianças. Na condição de cega, a imagem de Dorinha é positiva, digna, simpática. Em suma, é louvável a idéia de Maurício de Sousa no sentido de inserir, na Turma da Mônica, uma criança com deficiência que tenha as características físicas, sociais e emocionais de Dorinha. Histórias em quadrinhos podem constituir um dos meios de conscientização de crianças a respeito da inclusão social de grupos vulneráveis, excluídos. Mas não por serem histórias em quadrinhos e sim pela correta construção de personagens e situações nessas histórias.
Por esse motivo, três detalhes precisam ser apontados na primeira história de Dorinha.
Primeiro, a bengala nunca aparece dobrada; quando ela aparece, está sempre estendida. De um quadrinho ao outro, a bengala simplesmente desaparece. Os desenhos não mostram onde a bengala poderia estar quando Dorinha não a está usando.
Segundo, em nenhum momento foi utilizado o termo "cão-guia", cuja divulgação se faz tão necessária para a conscientização do público.
Terceiro, cada personagem da Turma usa apelidos para provocar os demais: Cebolinha chama a Mônica de "golducha" (p. 4 e 11); Cascão chama a Mônica de "dentuça" (p. 5); Mônica chama o Cascão de "sujinho" (p. 5); Cebolinha se refere aos "dentões" da Mônica (p. 11); até Dorinha se refere à "fama de sujinho" do Cascão (p. 15) e à Magali como "a comilona da turma" (p. 15). Apelidos inocentes? Nem tanto. Hoje, pais e professores estão tomando consciência de um fenômeno escolar chamado "bullying", o perigoso hábito de usar apelidos pejorativos com os quais muitas crianças acabam destruindo a auto-estima e até a vida de alguns colegas seus.
Para saber mais sobre "bullying": 1. Revista Nova Escola, edição n. 178, dezembro/2004 ("Bullying - Como lidar com 'brincadeiras' que machucam a alma. Acabe com apelidos, fofocas e comentários maldosos, tão comuns da escola", p.58-61). 2. Revista Época, edição n. 315, maio/2004 ("Sutil e cruel agressão. Pesquisa comprova que apelidos, provocações e outras formas de violência verbal e física entre crianças deixam marcas profundas", p.54-61). 3. Programa de Redução do Comportamento Agressivo entre Estudantes (site: www.bullying.com.br ).


Mônica e Magali têm um novo amigo.
Completando seu plano de acrescentar dois personagens com deficiência às histórias da Turma da Mônica, Maurício de Sousa lançou no n. 222 da revista Mônica, edição de dezembro de 2004, um menino que utiliza cadeira de rodas.
À semelhança de Dorinha, uma menina cega apresentada no n. 221 da mesma revista, este menino também faz sua estréia de uma forma positiva ao ser referido como "um gatinho, gatérrimo" (p. 4) pela Magali em sua animada conversa com a Mônica. Nos dois terços iniciais da história, Magali e Mônica conversam com muita empolgação a respeito do garoto e acabam indo até a casa dele "só para dar uma espiadinha". Cada detalhe que vêem (marcas no gramado, porta larga, rampa, pia e espelho baixos, barras de apoio junto ao vaso sanitário etc.) é interpretado por elas sem saberem que o menino anda em cadeira de rodas. Ele então aparece apenas no terço final da história e explica todos esses detalhes com naturalidade, inclusive demonstrando com prazer como ele os utiliza.
Por fazer parte de um plano do desenhista Maurício para possibilitar a interação entre crianças com deficiência e os antigos personagens da Turma da Mônica, a história deste novo amigo precisa ser analisada também pelo ângulo crítico. A tradicional tendência de dar um apelido a todos os seus personagens fez com que Maurício acabasse eliminando (deliberada ou inadvertidamente) o nome do novo personagem. No primeiro contato com Mônica e Magali, o próprio menino diz que "... (todos) me chamam de Da Roda" (p. 22). No último quadrinho, as meninas dizem: "Bem-vindo à turminha, Da Roda!" (p. 25). É o apelido sobrepondo-se ao nome, ao contrário do que é extremamente importante na construção da nossa identidade pessoal na vida real. Além disso, o apelido "Da Roda" ressalta a cadeira de rodas e não a pessoa que a utiliza. Esta é uma das armadilhas comuns em que caem pessoas desejosas de valorizar a questão da deficiência sem se darem conta do preconceito embutido. Observação: Foi divulgado na internet que Maurício de Sousa falaria, pelo bate-papo da UOL em 17/12/04, sobre este novo personagem cujo nome seria Luca e cujos apelidos seriam "Paralaminha" e "Da Roda". Na história que chegou às bancas de jornal no dia 20 dezembro não se confirmaram o nome Luca e o apelido "Paralaminha".
Histórias em quadrinhos, mesmo focalizando personagens infantis, não estão isentas de apresentar um mínimo de precisão técnica, já que a intenção do desenhista é a de divulgar exemplos de inclusão social em relação às pessoas com deficiência. E nesta nova história percebem-se as seguintes falhas técnicas: 1. A cadeira de rodas não tem aros propulsores (capa, p. 22, 24 e 25) e, por isso, o personagem "Da Roda" segura os pneus das rodas para movimentar a cadeira, o que é incorreto; 2. A cadeira possui um único apoio para os pés (capa, p. 20 a 25), seguindo um modelo muito antigo, incompatível com a realidade do personagem; 3. A rampa na entrada da porta é muito curta e a inclinação é inadequada (p. 13, 22, 24 e 25); 4. A cesta de basquete está baixa demais (p. 10 e 23); 5. O vaso sanitário está colocado longe da parede lateral (p. 17 e 21), fazendo com que a respectiva barra de apoio fique fora de alcance; 6. A outra barra de apoio (que está pregada no chão ao lado do vaso sanitário) deveria ser afixada atrás do vaso sanitário. Outra solução seria a de manter a barra afixada no chão e mudar a outra barra para trás do vaso; 7. O espelho está colocado verticalmente (p. 16, 20 e 21) quando deveria estar ligeiramente inclinado; 8. O modelo da maçaneta da porta (p. 12) não é adequado. Portanto, são falhas que poderão e precisarão ser corrigidas nas próximas histórias.
Destaquem-se, na história de "Da Roda", os detalhes corretos do ponto de vista da acessibilidade: a maçaneta da porta (p. 22 e 25) e o abridor da torneira seguem modelos aprovados; a cesta de basquete desenhada na capa está colocada numa altura razoável; e a pia do banheiro não tem coluna de apoio, o que facilita a aproximação da cadeira de rodas.


Associando rodovias ruins a pessoas em cadeira de rodas.
No caderno Economia, do jornal O Estado de S.Paulo, o colunista Joelmir Betting escreveu a respeito do péssimo estado em que se encontravam as rodovias brasileiras. O conteúdo em si, focalizando o descaso das autoridades, não tem nada de errado. O problema está na analogia que ele fez ("rodovias ruins = pessoa com tetraplegia"), analogia esta enfatizada pelo título "Em cadeira de rodas". Escrevi então para o jornal, nos seguintes termos:

Ao
FÓRUM DOS LEITORES
fórum@estado.com.br
São Paulo, 18 de janeiro de 2000.
Senhores:
Na excelente matéria "Em cadeira de rodas" (18/1), Joelmir Betting se refere ao "transporte rodoviário, apresentado como o grande vilão de um Brasil quase tetraplégico nesta vigília do século 21." Quiçá inadvertidamente, ele utilizou analogias preconceituosas, segundo as quais usar cadeira de rodas ou ser tetraplégico são coisas ruins. No título está implícita a mensagem de que o Brasil anda em cadeira de rodas porque suas rodovias não funcionam. E o texto associa a figura de pessoas tetraplégicas com a imagem negativa de um Brasil cujo sistema rodoviário está quase paralisado. A mídia deve apontar a precariedade dos serviços públicos e privados, mas tomando o cuidado para não reforçar estereótipos a respeito deste ou daquele segmento da população. - Romeu Kazumi Sassaki, Código de assinante: 02310852-5, e-mail: romeukf@uol.com.br.

Lamentavelmente, o jornal não me respondeu.


Comparando incompetência de fiscal com a cegueira.
Em 23/1/03, escrevi para o jornal O Estado de S.Paulo a propósito de uma charge que ele inseriu com o intuito de ilustrar a incompetência de um fiscal da Prefeitura do Município de São Paulo. Eis a carta:

Senhores:

Em 20/1, na seção São Paulo Reclama, foi publicada a carta nº 14.450, de Renata de Lucca, que reclama sobre "uma água gosmenta e fétida (parece esgoto), nojenta e suja", que escorre de um muro de uma propriedade, acrescentando que, após sua reclamação na Prefeitura, um fiscal vistoriou o local e escreveu no relatório: "nada vi, não constatei qualquer tipo de líquido escorrendo a céu aberto". Para ilustrar isto, o jornal inseriu um desenho [copiado abaixo], objeto do meu protesto. Nele, o fiscal é apresentado como um cego (de óculos pretos e bengala) segurando uma prancheta com o relatório, de costas para um buraco no muro de onde sai a tal água gosmenta e fétida. O ilustrador, ao apoiar a reclamante, fez uma analogia desastrosa. Mais uma vez se concretiza o velho preconceito sobre pessoas cegas, desta vez associando a incompetência do fiscal com a cegueira. E outra: além de não ver, esse cego não sente o odor fétido da água? O desenho, vinculado ao fiscal que não viu nada, constitui uma ofensa à imagem das pessoas com deficiência visual.
Estão recebendo cópia deste e-mail líderes e entidades de direitos de pessoas com deficiência (visual, física, auditiva, intelectual e múltipla) de diversos pontos do Brasil. - Romeu Kazumi Sassaki, Código de assinante: 02310852-5, e-mail: romeukf@uol.com.br.



Desta vez, o jornal me respondeu, porém laconicamente:

De: FaleCom [falecom@estado.com.br]
Enviado em: sexta-feira, 24 de janeiro de 2003 12:10
Para: romeukf@uol.com.br
Assunto: Jornal O Estado de S.Paulo: Preconceito - crítica "S.Paulo Reclama"
Sr Romeu,
Agradecemos sua manifestação e informamos que sua mensagem foi encaminhada a nossa coluna "S.Paulo Reclama" cujo e-mail é sprec@estado.com.br
Estaremos sempre a sua inteira disposição.
Atenciosamente,
Milton
Atendimento ao Leitor
S/A O Estado de S.Paulo.



Humorismo preconceituoso.
As duas imagens acima inseridas representam "ilustrações" de algum conteúdo escrito. As categorias de deficiência mais utilizadas por chargistas preconceituosos são a cegueira e a deficiência física (geralmente, do tipo paraplegia). Por coincidência, ambas as imagens focalizam uma pessoa cega.
Para terminar este artigo, vou inserir um exemplo de "humorismo maldoso". Na charge abaixo, uma 'brincadeira de mau gosto', feita para divertir o público por conta de um dos estereótipos mais utilizados sobre pessoas cegas: a dificuldade de fazer certas coisas por não enxergarem. A cena é de uma cozinha, onde o microondas está ligado e dele sai uma grossa fumaça escura. No cadeirão de bebê, está "sentado" um enorme peru, já depenado e sem a cabeça, e com um babador em torno do pescoço. Um homem cego (de óculos escuros, de pé e segurando sua bengala) está ao telefone fixo, dizendo: "Está tudo bem, querida, botei o peru no microondas e estou dando a papinha do bebê!!".



Repito: preconceitos inofensivos não existem, todos os preconceitos machucam. Devemos estar atentos permanentemente: filmes de cinema, novelas de TV, reportagens em todos os meios de comunicação. E denunciar o cometimento de ações preconceituosas e discriminatórias. Mas também ensinar, educar o público, mostrando como e onde os preconceitos e discriminações se apresentam. Sim, vale a pena o trabalho de conscientizar a sociedade. Todas as vezes em que interviemos, fizemos a diferença: a cada intervenção, acrescentamos um tijolo na construção de uma sociedade inclusiva.
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